O crescimento doEstado policial no Brasil está fora de controle
O presidente da Associação dos Juízes para a Democracia
comentou sobre as mais de mil ocupações de escolas contra a Reforma do Ensino
Médio e contra a PEC 55
Em entrevista à Carta
Maior, o presidente do conselho executivo da Associação dos Juízes para a
Democracia (AJD), André Augusto Bezerra, fez duras críticas ao que classificou
como "crescimento do Estado policial". O juiz comentou sobre as mais de mil
ocupações de escolas contra a Reforma do Ensino Médio e contra a PEC do teto de
gastos, que, em sua opinião, não poderiam sofrer reintegrações de posse por
esbulho. "Quem pratica o esbulho é o Estado, que está impedindo que o estudante
exerça seu direito fundamental à educação", diz.
André acredita que
temos sinais evidentes de um maior fechamento do regime político do país. E vai
além: estaríamos caminhando para um regime ditatorial.
A entrevista foi
realizada antes da ação policial na Escola Nacional Florestan Fernandes do MST.
Leia aqui a nota da
AJD sobre as ocupações de escolas e veja abaixo a entrevista completa:
Como viu a decisão do
juiz de Brasília que autorizou técnicas de tortura contra ocupações de escolas?
A AJD firmou uma
posição jurídica a respeito das ocupações como um todo. Nós evitamos falar de
outras decisões de juízes quando não conhecemos os autos do processo. A decisão
em si não costumamos comentar, ainda mais se a gente não vê o processo.
Do ponto de vista
jurídico nós entendemos - e discordamos de outras posições jurídicas que se têm
a respeito desta questão - é no sentido que o movimento de ocupações dos
estudantes como mecanismo de protesto não é esbulho. O que é esbulho? Esbulho
do ponto de vista jurídico é você tomar à força a posse ou a coisa de outra
pessoa. Ou seja, um prédio público, expulsa outra pessoa, e toma posse. Por que
não é esbulho? Porque o estudante não quer ficar naquele prédio público
ocupando, possuindo, efetivamente, em definitivo, permanentemente. Ele quer
fazer o protesto, chamar a atenção da sociedade, exprimir um ponto de vista,
pautar uma determinada política pública ou pautar um determinado tema que nem
sempre é colocado pela imprensa empresarial e principalmente pelo Estado nas
discussões públicas. Ou seja, o que o estudante quer quando faz a ocupação de
uma escola segundo o entendimento da AJD é, em suma, exercer seu direito
constitucional a liberdade de expressão e de manifestação.
O grande problema é
essa natureza de esbulho. O esbulho é outro, na verdade. Quem pratica o esbulho
é o Estado, que está impedindo que o estudante exerça seu direito fundamental à
educação. O estudante quer pegar para ele porque ele é o titular deste direito.
E o direito à educação não implica em um processo passivo do Estado perante ao
aluno. O que o estudante quer é também ajudar na construção da efetivação deste
direito fundamental. Por tudo isso é que nós entendemos como não passível de
reintegração de posse por esbulho esses atos de ocupação. A resposta do Estado
ao nosso ver deveria ser pelo diálogo. Chamar a conversa. Em qualquer
democracia mínima é a democracia do diálogo permanente da administração pública
e dos poderes como um todo com a sociedade. A partir do momento em que o Estado
se nega a conversar e começa a impor reformas importantes - que vão durar 20
anos a depender de uma das PECs - sem conversar com a sociedade, limitando-se a
conversar com lideranças políticas ou partidárias, o Estado está violando este
direito básico constitucional que é do diálogo.
Na ocupações, por
exemplo no Paraná, vimos movimentos de direita como o MBL que iam para frente
das ocupações, em movimentos de desocupações, com argumento de que os
estudantes ocupados estariam impedindo os demais de estudarem. Juridicamente
como vê essa argumentação?
O MBL fazer protesto
também é um direito deles. Direito ao protesto não tem ideologia. Cabe ao
Estado ser neutro ao direito ao protesto. O problema é que o Estado não está
sendo neutro em relação ao direito ao protesto. Estou falando do aparelho
estatal como um todo. Ele recebe muito bem um protesto de determinada linha política
e recebe com repressão um protesto de uma outra linha política. Ele está
fazendo uma opção. O que nos preocupa é quando o Estado faz esta opção em favor
de um determinado movimento. O MBL pode fazer o protesto dele. O que se
estranha é quando o Estado começa a apoiar um dado movimento em detrimento do
outro. O Estado não pode apoiar e nem desapoiar ninguém.
E essa argumentação jurídica de que os estudantes que estão
ocupando estariam impedindo os demais de estudarem?
O estudante que está
ocupando está na verdade tentando impedir que se viole o direito à educação
dele. Ele quer colocar na pauta o direito à educação. Quer colocar em discussão
pública o futuro do ensino do país que pode ser gravemente atingida caso, por exemplo,
se congele os gastos públicos por 20 anos.
Por que acha que
existe uma ofensiva por meio do Estado especificamente sobre as ocupações de
escolas?
O que eu vejo é o
crescimento do Estado policial como um todo no país. Não é de hoje. É um processo
contínuo que têm crescido cada vez mais e que agora mostra-se sem limites. Sem
qualquer espécie de limites. Desde o momento em que você começa a enxergar que
problemas históricos do país, como a corrupção, sejam tratados exclusivamente
como casos de polícia - e a punição penal sempre será seletiva - você começa a
permitir o crescimento do Estado policial. E agora esse crescimento do Estado
policial está ganhando uma força absolutamente fora do controle. E a gente não
sabe onde isso vai parar. Estamos vendo notícia de polícia fazendo desocupação
sem mandado judicial. Isso é coisa de ditadura. Ao que parece, determinados
agente públicos estão rasgando a Constituição e fazendo "justiça" com as
próprias mãos.
Diante da crise
política que o país vive o Judiciário tem tomado iniciativas, não somente
relativas às ocupações de escolas mas outras como a decisão sobre o direito de
greve do funcionalismo público. Por que acha que o judiciário toma essa
iniciativas e qual a relação entre a crise política do país e essa iniciativas?
A crise política do
país foi causada por todos os poderes da República. Por setores do Executivo,
por setores do Legislativo e por setores do Judiciário. A crise é causada pelo
Estado como um todo, que têm colaborado, por exemplo, no fortalecimento deste
Estado policial. Ora, se o Brasil hoje tem a quarta maior população carcerária
do mundo, quem prende é o Judiciário. Se você tem mandados de reintegração de
posse contra índios, que tem por exemplo a seu favor laudos da Funai dizendo que
um determinado pedaço de terra deve ser demarcado, isso decorre de uma ação do
Judiciário. O Judiciário tem tido uma participação muito grande neste
conservadorismo e neste processo de restrição de direitos. Repito: tudo isso
faz parte de um processo que não é de hoje mas que tem se ampliado e está
saindo totalmente do controle.
Acha que existem
sinais de um maior fechamento do regime? Quais as consequências que isso pode
ter para o conjunto da população e para os movimentos sociais?
Eu acho. Quando falamos
de fechamento do regime falamos basicamente do velho conflito democracia versus
ditadura. Democracia como regime aberto, regime do diálogo - muito além de
eleição, e ditadura o regime de repressão, o regime onde o Estado se nega a
conversar com a sociedade. Ora, o que vemos hoje é cada vez mais o Estado que
faz uso de seu aparelho repressor, visando implementar determinadas reformas
que interessam a certos grupos econômicos, negando-se por completo ao diálogo
com a sociedade. Diálogo não é apenas com a liderança partidária e sim diálogo
permanente com a sociedade civil. Democracia brasileira, pelo menos em termos
constitucionais, é de alta intensidade, que vai muito além das eleições. É uma
democracia, por exemplo, que respeita os direitos humanos - que requer conversa
e abertura do Estado. Mas o Estado está cada vez mais fechado e cada vez mais
repressor. Então caminhamos cada vez mais para um regime ditatorial.
Podemos afirmar,
neste termos, que caminhamos cada vez mais para um regime ditatorial?
Eu não tenho dúvida.
Está caminhando em sentido contrário à democracia. E o sentido contrário à
democracia é ditadura. Não sei como será esta ditadura no século XXI... as
coisas têm mudado, os golpes de Estado têm sido mais sutis, as ditaduras ou não
têm sido mais sutis... De repente a gente pode continuar tendo eleições, pode
continuar a ter liberdades formais, mas cuja aplicação não exista.
Quais as
consequências do ponto de vista ideológico e subjetivo deste crescimento do
Estado policial para o conjunto da sociedade? Como isso impacta a forma como as
pessoas se enxergam na sociedade?
O que não tem sido
muito sentido pela sociedade é esse crescimento do Estado policial e esse
fechamento do Estado. A crise econômica que chegou no Brasil com tudo talvez
tenha colaborado para essa não percepção. Mas em um momento ou outro a
sociedade vai perceber isso. Os próprios agentes do Estado, muitos deles bem
intencionados, vão perceber isso. Juízes, membros do Legislativo, pessoas da
administração pública vão perceber isso: que a coisa fugiu completamente do
controle. E a sociedade vai sentir isso porque em um determinado momento ela
vai se ver perdendo direitos sem poder reivindica-los, sob pena de ser presa ou
tomar uma agressão por parte dos agentes do Estado.
O que a aprovação da
Lei Antiterrorismo influenciou no que está acontecendo agora?
A Lei Antiterrorismo
está no processo que envolveu todos os poderes. Ela faz parte disso, tendo
iniciativa do Executivo que sofreu um golpe de Estado. Veja a ironia da coisa:
o próprio Executivo que foi derrubado fez aprovar esta lei, junto com parte do
Legislativo. O que nós esperamos é que o Judiciário julgue uma série daqueles
dispositivos como inconstitucionais. Vamos aguardar e cobrar do STF. Esperamos
que o Judiciário também não legitime mais essa ação repressora do Estado
brasileiro.
Fonte: https://www.marchaverde.com.br/